números ímpares
por que eu haveria de querer mais um cigarro
quando já fumei dezessete e o maço
faz barulho se eu chacoalhar,
de tão vazio?
números ímpares dão azar
(responde-me o isqueiro
enquanto flutua até minha boca
que, sem permissão, carrega o número dezoito)

eu inspiro a fumaça para segurar algo
com um abraço áspero e frio
meus olhos parecem não ter órbita nem forma
através do que eles veem
através da névoa
me deixo envolver para ser mistério
decerto há de haver diversão em enigmas.

a sombra proveniente da vela
já mudou de 45 para 60 para 180 graus
e eu ainda não decidi
se vale a pena ou não levantar da cama
e abolir sua vida com um sopro
a sentença paira em meus lábios
que se entretêm, entretanto
em parir fumaça.

não é possível casar-se com a loucura!
(e quem haveria de a querer, de branco,
imaculada, virgem, cristã?)
ela rodopia entre os dedos
e, provocante, se instala na caneta
que escreve tais versos

não são obra minha ― o poema e os olhos
não os quero tampouco ― os olhos e as sombras
mas não posso negar-lhes agradecimento
pois o vestido que visto
foi feito com suas linhas:
essas cicatrizes nada mais são
que buracos de agulha
por onde eles
resolveram
sair

quem dera eu pudesse
sair também.
quem dera eu pudesse
ser também.
quem dera eu pudesse
parar de olhar para o teto como se não
o conhecesse
(também).

“de novo, minha flor?”
tu me perguntas (ou talvez tenha sido o isqueiro)
mas não faz sentido porque tu
não os sentes como eu
não vês os ratos nem a L. nem
os sorrisos do velho
como poderia tu, amor, tu
saber se eles alguma vez deixaram meu corpo?
(deve ter sido o isqueiro)

os sorrisos amarelos
não denunciam menos que os olhos vazios
mas são bem mais convenientes
de modo que, se voltares a me perguntar
se ando tendo aquelas ideias
“horríveis”
novamente,
apenas lhe darei um deles
dizendo que aprendi a amar a vida

mas, querido, o que é amor?
e, porra, o que é vida?

por que eu haveria de querer mais um dia
no mundo, quando o meu corpo já não sustenta
meus seios inchados de tanto sentir?
por quê?, pergunta-me o calendário
porque eu tenho dezessete e números
ímpares dão azar, eu respondo
e ele sorri sua ironia e me mostra
que amanhã
é dia
cinco.