RE:
não há título porque o assunto é inconfessável. se você não arrancar o selo modernizado desse bilhete, então nunca mais falarei nisso. mas, agora, oh senhor, agora, tosse em minha garganta sensível uma agonia que precisa ser transformada em grito; para minha própria sobrevivência. é disso que eu falo, vê? ao escrever-te, coloco as vírgulas em seus devidos lugares, evito gerúndios, controlo supostos espasmos gramaticais e, antes de sequer perceber, usei até um ponto-e-vírgula. me preocupo com o seu entender, e isso consequentemente significa deixar de lado um pouco da minha visão individual, da minha confusão inerente. não há um eu e um você, em seu lugar há um pronome um tanto pomposo mas incrivelmente mais pesado: nós.

sei que vou reler estas palavras mais vezes que o necessário, porque, sendo franca, são palavras que preparo para você, são mais suas do que minhas. tenho inclusive que fazer pausas como quem consulta o dicionário algumas vezes, e, no meu íntimo, estou cansada de procurar tamanha precisão metalinguística. parecem freios, vê? e, de certa forma, são rédeas que não representam somente a mim, mas a você também.

quero desnudar-me, e deus sabe que posso ser desinibida. mas, para tal fim, minhas próprias mãos devem tatear meu corpo disforme, e não as tuas. essa obsessão por me definir geometricamente soa e decerto é incompreensível. e justamente por eu não entendê-la tampouco, ela parece tão urgente. mas que estúpido é o ser humano! não se contenta com a paz quieta e aconchegante da ignorância, essa bênção tão subestimada, e se contrai só de pensar em mesmice... a doença de nossa espécie decerto é essa vontade inquietante de entender, humanizar, definir e dominar tudo ao seu redor; aniquilar qualquer possível dúvida, e, assim que o fizer, correr atrás do próximo mistério inexplicável.

eu, como boa e comum humana, tenho também essa sede tão tola. e, como comum e minúsculo humano que sou, escolhi incontinentemente a pergunta mais insignificante para tentar responder: o famoso e insustentável "quem sou eu?".

que diferença faz, meu deus, eu saber exatamente quais adjetivos me definem? do que vale me internar em quarenta por inúmeras noites apenas para que eu seja previsível para mim mesma? qual a utilidade de me tornar entediante? por que não me enfiar nesse ninho que a vida me oferece com tanta graça, por que não me permitir cair nos seus braços e simplesmente inspirar-e-expirar, com a mente num tom tão agradável de branco? qualquer um há de concordar que é o inteligente a se fazer. não há motivos para procurar motivos, sejam quais forem: é a busca mais infiel existente.

a inércia é tão bela, o conforto é tão quente, a rotina é tão singular! é a eles que deveríamos nos entregar, não à desesperada necessidade de inovação. para que essa imensa arrogância de querer ser individual? não o somos, nunca fomos e morreremos antes de ser. não há sentido algum em não se entregar ao nada apenas vagar por aí até não poder mais, e então deitar no chão, se tornar translúcido, transparente e por fim branco. eu sei, meu amor, que essa coloração é a mais desesperadora de todas, mas também imagino que não deve ser por acaso que ela representa a paz.

não digo de forma alguma que desejo a ausência de movimento, pois isso pressupõe rigidez, e é utopia achar que de tal forma não enlouqueceríamos. mas condeno a pressa, porque não há urgência em chegar ao fim. o tempo descolore-nos conforme seu balanço, e, se há alguma coisa nos esperando através do véu, uma hora ou outra nós a contemplaremos.

digo tudo isso para justificar e tentar amordaçar minhas inquietudes e inseguranças, e me desculpar comigo mesma por ser tão insatisfeita. achei um colchão macio o suficiente para descansar, e mesmo assim quando me deito às vezes tenho sonhos com outras pessoas. é em tua cama que quero estar, sei disso como sei que tenho fome: é instintivo. mas, por capricho, às vezes tenho vontade de sair do quarto no meio da noite e me encarar no espelho até os primeiros raios de sol. em noites tais, você chama-me da cama - posso te ver, agora, ao ler esse desabafo, com meu nome a dar-te cambalhotas pelo céu da boca - e pergunta se ando insone, digo apenas que você ocupa espaço demais no colchão. você resmunga e volta a dormir. passo o resto da madrugada olhando para mim mesma assustada e agarrando minhas coxas, pernas e tornozelos com um medo estúpido que eu estivesse evaporando.

o banheiro da sua casa sempre foi pequeno demais, odeio o fato de você nunca chamar alguém para consertar a maldita água quente da pia. e me sinto escrota, escrotíssima mesmo, por nunca ter comentado essas e outras milhares de coisas que passam pela minha cabeça enquanto você dorme e eu tento não sumir. sinto que estou falhando comigo mesma ao deixar que sua substância seja mais forte em mim que mim mesma.

então, chegando ao ponto: eu resolvi te deixar.

digo isso sem certeza de que você vai ler, mas não faz diferença nenhuma: você nunca vai saber que eu te larguei. provavelmente continuaremos indo ao mesmo restaurante japonês capenga aos sábados e você vai permanecer insistindo em comer bolo de cenoura mesmo odiando  o sabor, só porque fui eu que fiz. mesmo assim, não estaremos mais juntos, ou, pelo menos, eu não estarei com você. um dia, eventualmente, provavelmente ano que vem ou no próximo, nosso namoro vai terminar e eu vou embora. você vai chorar. vai achar que errou em algum lugar e me pedir milhões de chances. amor, você não vai ter nem ideia que eu não seria mais sua há tempos (a partir do momento que lhe enviar essa mensagem).

você é como uma esmeralda bonita, brilhante, enorme. e, ao seu lado, minha qualidade de bijuteria de miçanga se perde. no nosso "nós", sou só um detalhe, o acento no "ó", enquanto as letras e as fonéticas são inteiramente você. não é submissão e tampouco autoestima baixa, é mais como uma reação química: eu sou o precipitado e, pelo amor de deus, estou cansada de estar sempre no fundo. isso não significa que vou te trair. não o farei, porque ao deixar-te continuarei dormindo com você e na mesma cama que você. entretanto, essa minha vontade de ser fiel tem um outro lado: preciso ser fiel a mim e não posso fazer isso sendo sua. você não tem culpa. 

assim como como amantes virtuais afirmam que "não é necessário estar perto para estar junto", acredito que a recíproca é verdadeira. continuarei sendo sua namorada, afinal, não é de todo ruim estar ao seu lado, apenas não farei mais parte de um pronome no plural, ainda mais esse meu e seu que é tão fraco e ilusório. eu não estou pedindo "um tempo" porque não preciso de tempo, estou decidida. também não termino o relacionamento abruptamente aqui pois não há necessidade de fazê-lo: como eu disse, você provavelmente nem notará a diferença. mas, pra mim, é uma questão de princípios e um problema que precisa ser resolvido imediatamente.

sem mais demora, então, deixo-te agora.

provavelmente eu não deveria dizer-te tudo isso, você não vai entender e eu também não acho que é necessário que você saiba. mas o Gato ainda não acordou e estava me sentindo sozinha, então espalhei minha solidão como um colchão numa piscina e boiei apoiada nele por alguns minutos enquanto vomitava todas essas bobeiras por aqui.  sinto-me melhor agora que tirei todos esses pensamentos de dentro do meu estômago. sendo que já escrevi, envio-te, porque senão seria tempo perdido. e você sabe que eu não gosto de perder tempo.

bj,
N.


ps: se você abrir esse e-mail ainda hoje no trabalho, por favor, passe no McDonalds e compre alguma coisa pra gente comer. acabou o gás hoje e eu tô morrendo de fome.