Hoje a noite não tem rima à noite
o orvalho que escorre da rosa como lágrima
não é suficiente para suprir minha sede
de beleza.
uma única gota de maciez
não fará diferença alguma numa vida de acasos escassos
e destinos quebrados
todo dia parece domingo
e isso seria bom se não fossem todos
quintas-feiras.

se houvesse tempo de ver a lua
eu a beijaria como um amante inevitável
a fuga que proponho nas entrelinhas
talvez tivesse como destino suas crateras de queijo
que se parecem  tanto com os buracos
que enfraquecem meu sorriso
estático

mas eu digo não, amor, eu grito não
pois ao gritar me sinto mais válida
ao gritar não me sinto presa
ao gritar ignoro os dias ruins
ao gritar, grito
e o grito que grito ecoa o meu gritar
como nenhum berro jamais faria.

quero dormir o dia e viver ao dia
pois a noite já não é mais
familiar e amigável como uma vez
prometeu ser.
a escuridão
(caso não tenha notado)
nada mais é que o descanso da luz
e, como tal, não merece ser aproveitada
em saídas etílicas e elitistas.

faz três dias desde que fumei um cigarro
dois meses desde da última vez que me embriaguei
há mais de um ano eu não me machuco.

a última vez que estive machucada, não me lembro
pois a dor é essa certeza frequente e afiada
que nos envolve como um manto azulado
e nos empurra na direção contrária a ela
[caminho que talvez não conhecêssemos
[se não tivéssemos sentido
[seu toque frio de bisturi

estou tão acostumada a essa transição diária
de 24 horas e alguns minutos
que já me habituei a o sol surgir e desaparecer sem cumprimentar-me
mesmo assim
ainda acho enigmático
quando raios de luz adentram
raivosos
pelas frestas minúsculas da minha persiana
tão docemente s(c)elada

de qualquer forma,
antes de conseguir sorrir sobre isso,

volto a dormir.