Sobre a Pianista que estralava os dedos
Queridíssima L.,
Como sempre, minha perna balança exasperadamente e meu pensamento se embola como meu cabelo assim que eu coloco o vocativo no canto esquerdo da página. Você, L., rouba-me todas as vontades que vêm a nascer assim que a lapiseira encontra o papel. Tudo bem, vou só fumar o meu cigarro e jogar em você as mágoas da fumaça que não é tão densa já que eu trago metade e só jogo para o mundo o resto.
Mas é um erro achar que desta vez venho falar de mim, ou ainda de você. Venho contar-lhe sobre uma moça que encontrei e que anda sorrindo meus dias. Ela é minha criança e eu sou a criança dela; mas isso, L., vou lhe contar depois. Agora me bastam uma introdução decente e uns contos pra explicar: como uma pulseira de miçangas, a qual cada uma tem um sentido peculiar e pessoal.
Vamos começar do começo, sim, L.?
Agora é outono e, você sabe, sempre gostei das cores que as folhas adquirem, tons pastéis e tons escuros, contradizendo-se. Na verdade, agora é primavera, e tudo anuncia que o que vem é um verão quente e bonito; porém, eu quero outono, então, L., é outono. E um outono daquelas que envolvem, outono de alma, outono de ser, outono de mim. E, não, não é triste! É tudo bonito nesse outono, L.! Você mal sabe, você não entende, você... Você é primaveril, florescendo nas pessoas e nos lugares como um brotinho de feijão que nasce no algodão. Mas, L., você há de entender que o outono é a estação mais bonita de todas.
Isso eu explico depois. Dito que é outono, falta-me fechar os olhos e sorrir, por ser outono e por não ser inverno.
(Acho que é bom deixar registrado aqui a pausa que eu fiz para fumar um cigarro. Você sempre se preocupou demais com a quantidade de nicotina que eu ingeria e de menos com os bens e as idéias que caem em meu peito junto à fumaça. Entenda, L., que fumo por fumar e por ser. Todos fazem alguma coisa pra justificar seu ser. Pois bem, eu escrevo cartas a você e fumo! Aceite isso, querida, por favor. Peço-lhe e tento lhe explicar, pois sei o quanto você é teimosa. Enfim, pausa para um cigarro).
O meu contentamento é evidente, agora que há em mim mais esperança que medo. Eu fecho os olhos e já saio dançando, como naquelas cenas que imaginamos juntas e que eu realizei com ela. Peço, por favor!, não tenha ciúmes, mas minhas danças e meus cigarros são mais bonitos com ela do que com você. Quiçá porque ela tem muito de você. Talvez por isso, ou talvez só por ela ser ela e fim. Tem coisas que são assim e são assim e ponto final, não adianta muito discutir nem nada. Tem coisas na vida que acontecem e nos deixam boquiabertas, eu e você, L. Mesmo você, que acha que já viu de tudo nesse mundo azulzinho. Ah, me deixa morar aqui, aqui que tudo que está certo, L. Aqui tudo está bem, você vê?
Então é só colocar uma música otimista e sorrir.
Apesar de eu já vir pedindo coisas demais, faço mais um pedido: por favor, não diga que não me reconhece mais agora que estou vestida com esses casacos de plumas e amores. Eu estou bem, enfim, não ótima, mas isso já seria pedir demais.
Mas, como eu disse, o objetivo dessa carta não é falar de mim, então encerro minha introdução por aqui.
Você conhece essa menina, pois tenho certeza que você já sambou pelo coração dela também, e ainda deve dançar muito por lá, ou pelo menos eu espero assim. Para o futuro, não resta dúvidas que haverá você, pois haverá nós, e... Bem, estou falando de você de novo.
Ela tem uma pinta perto do nariz, e, sempre que fecho meus olhos, é lá que me imagino morando. Isso não é muito importante, mas é nos detalhes que meu amor transborda, então acho que é válido contar-lhe essas pequenas coisas também. Ela faz tsurus para não parar de acreditar e me conta histórias bonitas. Eu beijo-lhe o rosto e o pescoço, e ela ri, porque tem cócegas. Dançamos no meio do parque e ela fica com vergonha quando grito na rua (e no fundo eu só faço porque gosto quando ela finge que está brava).
Ela é uma pianista, e vai tocando o mundo com os sons bonitos que saem dela. Ela é o piano também, e seus risos são em lá e sol... Ela é lindíssima. E ela me deixa toda com mania de superlativos, porque os comparativos não são mais suficientes. Não é mais o bastante pensar que ela é boa e melhor que a anterior. Ela é boníssima, belíssima. Ela é todos os adjetivos que consigo pensar e atribuir. Ela me dá vontade de pegar o dicionário e ir descobrindo novas palavras, porque ela me faz acreditar que existem novos significados para a vida.
Ela estrala os dedos, e isso a faz perder a agilidade e não conseguir alcançar algumas notas... Mas, tadinha! É um vício difícil de largar, esse, e eu entendo! Nunca a culpei por essa perda, e acho que serei injusta se algum dia o fizer. Ela tem medo, e isso é até bonito de longe, mas de perto me assusta. Assusta porque eu não entendo direito como funciona e acabo me perdendo. Mas eu vou lá e beijo-lhe os dedos tortos, porque eu acho que no fundo ela merece alguém que faça isso. Vou e beijo-lhe os calos, porque sei que é o que ela faria comigo.
E ela, L., ela faz meus calos parecerem coisa pequena e eu posso enfim tocar meu violão. Com as notas saindo meio tronchas, admito, nunca fui muito boa musicista. Mas eu sei que a gente ainda vai compor uma canção mais que bonita, eu e ela. Eu sei que ela me acompanha no piano e eu não paro de tocar nunca, se ela pedir.
E eu não ligo se existem pessoas que sabem tocar mais bonito e melhor que nós duas, porque eu sei o que a gente faz é diferente. A gente faz vida da música, e não o contrário.
Então, L., sempre que me ver sorrindo, já sabe o motivo.
Com atenção e um cigarro a ser aceso,
Ninguém menos que eu.
P.S.: Perdão pela linguagem tão pobre, mas veja que há certa destreza nela também. Acho que ela me faz ver que as coisas simples são belas, no fundo.