A Fantástica História do Pássaro Que Queria Ser Lesma (E Todos Vocês Deveriam Querer Também)
Quero começar essa história com “era uma vez”, mas o tempo (verbal) atual me força a dizer presente(s). Os dedos estão cansados, mas escrevo mesmo assim. A unha curta demais, meus erros me consumindo, mas eu digito porque sei que unhas crescem, e corações também. Porque tudo na vida é curável, tudo se renova, tudo cresce e tudo morre. E esse é o maior mistério triste e bonito da vida, como ela sempre continua, apesar da dor, apesar de tudo. O caminho não acaba... O caminho só acaba quando a morte o interrompe, e, mesmo assim, a matéria renasce e o morto serve para dar vida aos átomos... Nada acaba.
Isso, entretanto, não tem muito a ver com o que vou lhes contar hoje, pelo menos não por ora. Falarei sobre o pássaro. O pássaro não sabe disso, embora o seu canto traduza a plena perfeição e leveza que o mundo é (às vezes). Não venho discordar dos poetas, não: o pássaro é belo e me inspira sentimentos tão gloriosos como orações sinceras. E seu vôo, e seu canto! Singular como nenhum outro animal; bonito, pequeno, tão... Tão meu. Quero tê-lo, quero abraça-lo e agarrá-lo para cuidar de suas asas que já devem estar cansadas... Entretanto ainda batem. Como um coração daquela menina que se iludiu, sempre se renovando. Assim são as asas do pássaro, assim é o pássaro. Abala-se, mas não se entrega.
Porém, o pássaro tem medo. Usa a leveza que tem para proteger-se. Ao ouvir o soar de passos, apavora-se. Logo pula para longe, pensando na dor que provavelmente é ser atingido por um daqueles sapatos tão egoístas e duros. O pássaro se esconde e sobe, num lugar onde ninguém sabe onde é (só outros pássaros). O pássaro canta para disfarçar a tristeza do seu próprio medo. Ele sabe que muitas das pessoas que passam por ele o acham encantador e querem afaga-lo, mas, por não saber distinguir as pessoas cruéis das que só querem seu bem, ele voa de todas, adiando e assassinando um futuro que poderia ser amável.
Há, também no chão, embora separados por várias espécies, a lesma.
A lesma não é muito bonita, se você analisar. Não inspira sentimentos poéticos, não é a musa de poemas. Não canta. Não encanta. Ela é singular, porém de forma negativa. Asquerosa, para uns. Frustrante, para outros. É banhada não com belas penas, e sim com aquele líquido meio transparente que inspira ojeriza... “Eca, Dona Lesma, a senhora poderia ser mais bonita!” dizia-lhe a formiga, que é trabalhadora, realista e sempre enxerga as características gerais dos outros animais.
A opinião da formiga não faz sentido para mim. Vejo, na lesma, a filosofia de vida mais peculiar que pode haver.
A lesma desliza, devagar. Vai traçando seu caminho numa linha torta, que ela tenta ao máximo enretar. Não foi feita para andar em linhas perfeitas, nota-se logo, mas ela tenta mesmo assim. E, com o tempo, quem sabe, vai conseguindo. Quiçá os rastros gosmentos deixados pela lesma nunca sejam retos, mas ela não desiste. Otimista que só!
A lesma sabe. A lesma sabe mais que os ratos, mais que a formiga, mais que os golfinhos. A lesma entende tão bem da vida! Ela entende e, por entender, faz. Fazendo, inspira em mim desejos também solares, de ser lesma... Mas eu não entendo, e talvez nunca vá entender.
A lesma tem medo, sim. Ela não quer que um daqueles sapatos, por pura crueldade, por acha-la inútil e feia, a machuquem, transformando-a em pura gosma remexida. Mas ela a vontade dela de andar em linha reta é maior. A ambição da lesma é fazer o bem. E ela faz! Por isso, a lesma não se mexe quando se aproximam dela. Seu pequeno coração acelera, em vezes ela até chega a se desesperar pensando na dor que virá, mas ela continua seguindo seu caminho-torto-torto-torto-quase-reto. Ela dá sua vida na mão de quem mais sabe, ora: a vida!
Não pense que a lesma é como os cachorros, fieis a seus deuses e os maiores seguidores do destino. Lesmas são tão céticas, ou mais, quanto corujas velhas e sábias. Mas as lemas simplesmente sabem que é errado deixar de arriscar por simples medo. Elas sabem que andar em linha reta, ou seja lá qual for o maior objetivo de uma lesma, é mais importante que o medo de ser pisado por um sapato.
Ninguém quer pisar numa lesma. A sujeira não fica inteira no chão, e sim se infiltra também pelos sapatos do “assassino”. E que nojo é ter uma lesma grudada em seu pé! Lesmas sabem que a vida não é boazinha com elas: deu-lhes essa aparência feia e mais quinhentos defeitos que não vale a pena mencionar. Porém, elas entendem que não se pode deixar ser engolido por esses males. Os males vêm para todos... Até para os mais azuis pássaros!
A lesma tem mais vontade de ser certa do que medo de errar. E isso, bem, isso já é meio caminho andado para um acerto.
(Viu, dona Formiga? Seja boazinha com sua amiga lesma da próxima vez!)