O incidente terrível das jujubas (Ou Descobrir-se Amando e Não Se Poder Ter)
Quando menor, desconhecia as utilidades esplêndidas das linhas do metrô. Meu pai, que se banhava na quentura de um amor incondicional à cidade cinzenta em que vivíamos, classificava como absurdo aquele minha falta de urbanidade. Levou-me ao minhocão — esse foi uma decepção, mas isto é história para outro dia —; ao centro de São Paulo; a uma rota de ônibus; e, por fim, à linha azul do metrô.


Os encantos foram instantâneos. Os bilhetes magnéticos eram bem mais interessantes que as moedas e notas ásperas infinitamente comuns, mesmo aos meus olhos pueris. As catracas assemelhavam-se às de um estádio de futebol, porém sem a vantagem de ter aqueles números grandes que esbarravam nos meus dentes como balbucios.

O metrô era irresistível.

Ao entrar no vagão, o deleite expandiu-se. O vento intruso pressionava as orelhas e lambia-me a face. Podíamos sentar, e assim jazíamos. Eu observava os rostos desfigurados, esquecidos e descaracterizados pelo cotidiano.

Era tudo regido pelo cinza sem deixar de ser extremamente agradável. Na minha ânsia e curiosidade infantil, nasceu minha condenação. Meio longe, mas ao meu alcance, constava uma moça com um pacote de jujubas.

Ela tinha a pele morena como o cabelo, preso, querendo escapar daquele elástico que me impedia de saber o comprimento exato dos fios. Olhos cansados e comprimidos, pequenos talvez, que se concentravam em algum ponto além da minha compreensão de criança — o nada.

Não me prolongarei muito sobre a mulher — minha memória falha e o mais importante constava em suas mãos: a embalagem que envolvia aqueles doces. As cores eram conhecidas, mas era sempre um deleite checar quantas de cada uma havia. Lembro até hoje da sequência: roxo, laranja, verde, vermelho, amarelo, roxo, roxo, amarelo, laranja. Verde.   Não que isso importe muito, também.

Encarei-a com olhinhos suplicantes. Meu pai, tão distraído em seu jornal, nem notou meu martírio: aquela mulher estava me devorando a cada jujuba que colocava na boca! Aquilo tudo era meu, e não dela. O ritmo com que seu maxilar vibrava me machucada. Ameacei chorar, mas não o fiz. Não sei bem por quê.

Ela chegou à bala vermelha: minha favorita. Uma lágrima invisível desceu da minha face, e eu realmente me senti molhada e desamparada. Aquela mulher estava, aos poucos, dilacerando minha infância, engolindo todos os meus sonhos. Onde já se viu adulto engolir assim uma criança? Aquelas jujubas eram minhas, o açúcar fino em cima delas me pertencia; se duvidar, até o plástico que a embalava deveria ser meu. E ela, ela estragou tudo! Esqueci também do prazer que era balançar as pernas enquanto o veículo em que estávamos se movia em alta velocidade. De repente não havia mais isso. Havia só eu e minha infância despedaçada.

Chegamos à estação Ana Rosa no justo momento em que ela colocava na boca a bala cuja cor correspondia à minha segunda favorita. Lancei-lhe um último olhar fulminante e torci para que ela tropeçasse e caísse, coisa que, na minha mente pueril, era o pior que poderia acontecer a alguém.

Não caiu. Não que eu saiba.

Meu pai notou logo meu constrangimento e perguntou-me o que havia. Eu, entretanto, não o contei. Sei porque escondi aquilo, era uma vergonha eu, em meus plenos sete anos, já não ser mais criança. O que Carlinhos, meu namoradinho de escola, diria quando soubesse que haviam arrancado de mim assim o que ele mais gostava em mim? E eu, sem infância, não poderia mais entrar no parquinho. Minha vida estava a-ca-ba-da.

Meu pai entendeu meu silêncio, como os pais bons fazem. Abraçou-me e, para me animar, me comprou, adivinhem, um pacote de jujubas.

Comi, meio a contragosto. Eu já não era mais criança, e adultos não comem jujuba do jeito incrível e deslumbrador que crianças fazem. Não havia nenhuma jujuba vermelha no pacote. Haviam roxas, porém, então perdoei o “fabricador”.

Mas nunca perdoei a mulher. E eu sei, ainda hoje, que nenhuma jujuba seria mais gostosa que aquela que ela engoliu, sem me oferecer, sem me salvar de ser, para sempre, uma criança com a infância quebrada. Pelo menos por um dia.
                           
P.S.: Carlinhos continuou gostando de mim: nem percebeu, eu acho. Eu continuei entrando no parquinho, também. Mas, desde aquele dia, eu sei que não sou mais a mesma. A minha inocência foi arrancada de mim e cuspida de novo, mas danificada: uma massa retorcida, colorida...

Assim como as jujubas depois de mastigar.