Numa nova estação / Acesos como mil vagalumes

O aroma quente de seu perfume ia se dissipando numa velocidade impressionante. Alice observou lentamente o lugar se encher de pessoas, cada uma vivendo um pedacinho pequeno do que o mundo era. Sorriu. Estar no conjunto sempre a agradara. Mirou a janela, observando as casas se tornarem mais cinzentas e altas. O ônibus agora se aproximava do centro da cidade, na área onde havia a maioria dos escritórios. Ela, particularmente, preferia as casas com floreiras e cheiro de chá ― que grudava na pele mais que qualquer perfume francês. Embora, mesmo que Alice não quisesse admitir, essas também estavam em falta ultimamente. “Tempos modernos”, suspirou.

**

Impulsionou com a perna, apoiando-se, o primeiro passo para subir os três degraus da porta do ônibus. Ainda com a respiração ofegante, devido a corrida que dera para não se atrasar, estendeu a mão para o cobrador com o dinheiro da passagem e andou para os últimos lugares, a última cadeira da direita era sua favorita. Surpreendeu-se ao ver que, em meio a tantos lugares vazios, existia uma menina na penúltima cadeira a direita, mas continuou sorrindo e pediu licença para sentar no seu lugar de sempre.

Desconcertado, como qualquer um fica ao sentar do lado de algum desconhecido, tentou iniciar uma conversa:

— Bom dia… o tempo está frio, não está?

***

Estava em volta em pensamentos suaves quando percebeu que já estavam no quarto ponto. O ônibus agora estava com metade dos assentos ocupados, como um queijo esburacado. Quase não ouviu o pedido de licença do estranho que se sentou ao seu lado, apenas acenando vagamente com a cabeça. Porém, ao ouvir o som de sua voz novamente, deu um sobressalto.

― Sim, sim. ― Respondeu ao comentário dele sobre o tempo, abrindo um sorriso doce e puxando o casaco para se aquecer. Agora que parava para reparar, estava mesmo frio…

Perdeu-se por mais um instante fitando a janela. De algum jeito, tudo estava um pouco mais azul escuro agora. E aquele tipo de azul escuro que não acharíamos bonito em uma blusa. Era como se as casas de avó com cheiro de abóbora fossem o verão e os panfletos pisados fossem folhas mortas. Outono.

***

Ele, sempre irritado e de mau-humor, parou e por um segundo também sorriu. Não somente sorriu, como passou a fitá-la n’uma forma de contemplação a aqueles lisos cabelos escorridos e um sorriso cândido capaz de fazê-lo rir despreocupadamente.

— Perdoe-me a falta de educação… meu nome é Luke.

— Ah, tudo bem! Já não é muito normal você estar falando comigo, normalmente as pessoas fingem que a do lado não existem quando estão em um ônibus. O meu nome é Alice!

Voltaram a ficar olhando para um lado e para o outro, na esperança de que em um desses olhares pudessem encontrar um assunto.

***

Voltou a fitar o desconhecido nem-tão-mais-estranho à sua frente. Seu rosto tinha uma harmonia engraçada. Era como se tivessem apertado fortemente cada parte para encaixar perfeitamente. Estava mergulhando novamente em devaneios quando ele falou. Alice agitou a cabeça e disse, temendo que Luke percebesse que ela estava o observando:

— Então! O que você faz, Luke?

***

Sorriu.

— O que eu faço ou o que eu gosto de fazer?

— Como assim?

— Assim, eu estudo mas eu gosto de escrever.

— E o que você escreve?

— Ah, você sabe.

— Não sei.

— Sobre amores, sobre situações que eu próprio invento, sobre algo casual, como um menino conhecendo uma menina em um ônibus.

Sorriram e voltaram ao desconcertamento de antes.

— Você vai algum dia escrever sobre isso?

— Isso o quê?
— Essa história da gente se conhecendo.

— Talvez sim.

***

A perspectiva de ser tão importante para um estranho e ser a protagonista de um texto ― mesmo que uma mísera crônica! ― brotou no peito de Alice como grama se espalha pela terra. Logo ela abriu um sorriso encantado (e censurou-se mais tarde por isso).

— E como seria a Alice? ― Perguntou ela, envolta em curiosidade palpável. O ônibus parou e as pessoas começaram a entrar nele, barulho e mais barulho e então se fez o silêncio. O silêncio que era evidente nos olhos de todos naquele ônibus… menos no dele. Seus olhos brilhavam como pequenas centelhas dançantes.

— Ela teria um sorriso branco como a neve, eu acho. E riria de besteiras, como você está fazendo agora. Os cabelos dela escorreriam pelos ombros em ondas belas como as dos oceanos e os olhos dela o fitariam com a atenção de uma criança ao seu novo brinquedo.

Saboreou as palavras como se fossem seu prato preferido. Imaginou como as coisas eram engraçadas… Eles se conheciam há cinco minutos, mas ela já tinha a certeza que ele se refletiria em todos os outros passeios que fizesse, num pedaço de papel ou no cheiro de torta.

***

— E o Luke?

— O Luke seria um besta. Aquele que corre atrasado tentando não se atrasar e sempre senta na última fila, na última cadeira à direita. Então ele conheceu a Alice e, como romântico que seria, apaixonou-se por ela facilmente. Respiraria cada vez mais forte e mais forte ao lado dela, tentando conseguir cada vez mais reter aquele cheiro do perfume dela na sua memória. — ao perceber o que tinha dito, sorriu — Cacete.

— Cacete. — respondeu ela — Eu… tenho que descer aqui perto, na próxima estação, Luke. Quando terminar de escrever este conto, poderia me mandar uma cópia?

— Claro. Como posso te encontrar?

— Quem sabe em outro ônibus? — sorriu, levantando-se — Até lá, guarde consigo uma cópia.

— Você é louca — respondeu Luke, balançando a cabeça.
— Nós somos. Afinal, quem se apaixona por alguém que conheceu em um ônibus?

Ela acenou com a mão e desceu os três degraus.

***

Ninguém notou, mas ela saiu de lá com a respiração ofegante. Sentia-se como se não pertencesse àquele lugar e não estivesse na porta do trabalho. Ligou o iPod e colocou bruscamente os fones no ouvido, disposta a esquecer tudo aquilo. Ignorar o frio.

Que viesse o inverno.