Trans/escrever
Para mim, escrever sempre foi como pescar.
Talvez meus pensamentos meio aquáticos, assim, se devam a minha obsessão ao peixinho Beta da nossa família, que se chamava, que surpresa!, Beta. Ele era laranja como as frutas que eu levava para escola e comia tanto quanto nosso antigo cachorro, Garfield (Um pequeno parêntesis: nossa família nunca foi boa com nomes, como já se mostra evidente. Garfield nem ao menos gostava de lasanha, como o gato alaranjado da TV. Mas acho que esse sempre foi um problema: TV. Meu irmão não vivia por outra coisa. Voltava da escolinha ― que, aliás, de inha não tinha nada, pelo menos comparada com a minha ― e já ia ligando a tela, pelo controle, já que não alcançava o botão. Assistia Pokémon, Digimon e todos os outros ons possíveis até a bendita hora em que Judite, nossa babá, o expulsava da sala para que essa fosse limpa. Ele, não disposto a perder nenhum segundo da programação do Cartoon Network, fazia logo a redação da tarefa de português, não duvido nada que inspirada num daqueles heróis ou monstrinhos. Disso nunca pude ter certeza, já que só adquiri habilidade de ler algo de não fosse meu nome bem tarde; e minha curiosidade como devoradora de livros, redações, bulas de remédio e placas de trânsito também demorou um pouco para chegar. De qualquer forma, meu irmão vivia tanto pela TV que deve ter achado que o nome do gato guloso e ranzinza deveria ser legal. Mesmo que, bem, para um cachorro). Bem, Beta era bem divertido. Ou, pelo menos no conceito de diversão pueril que eu tinha. Ele abria a boca como se falasse comigo e eu sempre imaginava ele chamando meu nome para pedir comida. Era o máximo. Assim, como meu irmão vivia pela TV, acho que passei a viver pelo mar. Acho que, por isso, mesmo alguns anos depois, a idéia de pescar grudou na minha mente para nunca mais sair. Como um chiclete deixado ao Sol num dia bem quente que gruda num sapato. Por mais que se tente remover, sempre resta um pouquinho.
Outro fator que talvez tenha influenciado foram os ainda não aprendidos prefixos. Eu, ainda pequena, mesmo que mais velha, logo associei: expressar, explícito. Ambos indicando algo “jogado para fora” como eu, na época, definia. Muito nova para saber a grafia, bimba: escrever, es... Ah, é para fora também.
Bom, voltando à relação pesca-escrita. É o seguinte: para escrever não precisa nem de alma. Você coloca a idéia no anzol, joga para atrás e, com um impulso pequeno, o anzol caí na água. Ela se agita, inquieta, e depois a calma cristalina vem. E então, é só esperar uma puxada e pronto, um escrito. Se der sorte e puxar bem, pronto, um dos grandes, talvez até dê pra encher a barriga por uma semana. Esse pensamento, mais tarde, me trouxe alguns desgostos estranhos. Eu não costumo ligar muito para coisas importantes, de certo modo, mas coisas pequenas e pontudas sempre me cutucam. Como quando você quebra um copo e trata de recolher todos os cacos grandes, quando na verdade os únicos que poderiam te cortar são aqueles pequenininhos, que ficam virados, pontudos, traiçoeiros. Talvez eu na minha mania de aplicar teorias à pratica (ou práticas à teoria), considere o mundo como minha cozinha depois de uns copos serem quebrados. (Uma pequena curiosidade: gosto de quebrar copos. Não porque gosto de quebrar coisas, mas acho que a surpresa faz a gente ficar vivo. E as mais desagradáveis, bem, são as que bombeiam mais sangue. As pequenininhas, assim, principalmente)
Enfim... Ficou marcado. Mas isso é comum: quase tudo que é infantil fica. Porque quando você “fica grande” e pára de olhar para cima, mesmo que pequeno, passando a olhar para baixo, muitas vezes com mais desprezo que tamanho... Bem, é sempre bom ter uma idéia dessas, grande, mas que olha pra cima.
Comentei, mesmo que não devesse, essa minha idéia íntima com alguns estranhos no bar. Porque, bem, um pouco de álcool e açúcar no sangue, se perde um pouco a noção das coisas. Tanto do que se deve falar quanto do que é íntimo ou não. Não que eu beba muito, apesar de basicamente nunca estar completamente sóbria ― minha própria existência cambaleia meu andar ―, mas todo mundo já caiu na tentação de uma garrafa em troca de uma paz momentânea e a promessa de esquecer os problemas. Embora álcool só deixe as coisas mais confusas e com o tempo se aprende que do que monstrinhos interiores mais gostam é de tormento para ficarem mais monstruosos ainda. De qualquer forma, esses estranhos apresentaram-se a uma idéia nova: inscrever, então. Crever para dentro?
Acho que agradeço às ilusões, pois foi justamente essa estranheza dita por estranhos que me levou à conclusão. Estranhos, se parar para pensar e não pensar sem parar, são os que dizem as coisas mais reais. Porque eles não conhecem você, suas bizarrices e seus costumes, não conhecem seus medos, sua ira, não te temem, não temem te temer. São só... Toques. Infelizmente hoje o que acontece é que nem estranhos eles são mais. São só... Rostos, longe... Gelados. É uma pena, pois não há nada mais agradável que sorrir e mentir para estranhos. Em ambos, entregar sua vida de bandeja. A real, mesmo que eles não percebam e nem se sirvam. Mas, de qualquer formar... Não. A idéia não me desce da garganta, por mais que eu tente engolir. Deve ser seca demais... Bem, quando você se inscreve num concurso, você entra no concurso. Então, ao inscrever, você entra no crito, escrito. E não ele entra em você, firmando suas raízes, o que, na visão de uma ainda criança, seria o ideal. Os melhores autores, os melhores livros, textos, sentimentos e vidas são, bem, copiados da alma. Transcritos.
O problema de transladar é que nunca se sabe onde parar. Se o original pára, você deve acrescentar sua nota de tradutor no rodapé? Bom, acho que essa é uma dúvida meio idiota. Ninguém nunca lê essas coisas. Se for curta, é insignificante, mas, se for longa, é significante demais, alterando o original. Talvez seria melhor nem colocá-la. Mas acho que quem decide a significância da coitada da nota do rodapé é o leitor. Bem, o que eu quero dizer é... A gente deve colocá-la? Ou mudar aquela palavrinha que ficou feia na situação ortográfica? Ou ainda o tempo verbal, já que desse jeito ficou mal colocado? É sempre a maior dúvida de transcritores (ou, pelo menos, dessa aprendiz): onde parar?
Se me perguntarem se isso aqui, seja lá fábula, crônica ou anacrônica, é escrito, transcrito ou inscrito, eu não saberia responder, de verdade. Não vem de minha alma, mas com certeza continua boiando dentro de mim. Eu arriscaria que é só crito. Porque... Bem, simplicidade talvez me fascine. Quer dizer, eu era fascinada por um peixe. Não se pode esperar muito de mim.