Diálogo(s) sobre unhas
— Gostei das unhas. (Coloridas, assim, parecem com você. Já lhe disse mais cedo, por obra do acaso... Se eu tivesse que te descrever, menina, eu não conseguiria alcançar as palavras. Porque mesmo com milhões ou bilhões de pessoas assim, você se perde tanto que consegue ser única.)

— Ah, obrigada. (Não sei se levo ao elogio já que meus pulmões são tão alheios que continuam respirando normalmente. Já minha garganta, a parte mais sinistra e racional de mim, parece lisonjeada.) Mas estão meio compridas, preciso cortar. (Já estão começando a incomodar quando toco meu piano. Sabe, não se pode incomodar a harmonia de uma música por uma coisa tão inútil quanto unhas. Mesmo que, como você disse, elas me reflitam. Tenho que sacrificar alguns pedacinhos de mim. Todo mundo tem.)

— De nada! (Você e essa sua garganta, menina... Devia cuidar mais dela. Sabe, qualquer dia ela se revolta contra você e te vomita um câncer. Do jeito que te conheço — ela não deixa de ser parte de você, não é? —, não acho nada impossível.) Ah, mas então por que não as corta? (Apesar de eu discordar totalmente desse ato. Você deveria as deixar crescer, assim. Pintar de todas as suas cores. Usa-la como alma.)

— (Sei disso. Às vezes eu queria a fazer carinho, sabe? Mas tinha que ser de dentro para fora, como um sentimento bombeado. Não consigo, embora ainda tente.) Estou sem minha tesoura aqui. (Já uso. Já uso, por isso que está colorida desse jeito, para enganar a si mesma, afogar, afagar o negro, o preto.)

— (Acho que entendo. Essa é mais ou menos minha definição de amor. Carinho de dentro p’ra fora.) Ah, sim. Mas quando você chegar em casa, poderia cortar, não é? (Mas, se você usa... Então por que...?)

— (Mas nã-não, não é de amor que falo. É de carinho. Acho que é mais importante que amor, porque carinho não se diz e não se mente. Só se faz.) Duvido. Não vou ter tempo, provavelmente. Nunca se tem tempo quando está em casa, não para essas coisas tão importantes que muitas vezes vêm disfarçadas de futilidades. Cortar as unhas, por exemplo. A gente sempre pensa em limpar a casa antes. Por quê, hein? (Ah, por que corta-las se elas são minha alma? Porque, como eu disse, às vezes a gente tem que sacrificar essas coisas em troca de algo maior.)

— (Hm... Mas o que é amor senão carinho em excesso?) Não sei... Sei lá... Hm, talvez eles achem que, se limparem os móveis, aquelas sujeiras que ficam embaixo da unha não existam mais. Engano deles, não é? As unhas sempre se sujam, mesmo que a gente limpe ao redor e as limpe o tempo inteiro. (Mas, menina... O que pode ser maior que sua unha, digo, alma?)

― (Amor não é carinho em excesso, não. Amor é a exceção do carinho.) É, acho que está certo: se uma unha tem que se sujar, ela se suja e ponto. (Algo que a eternize. Algo que a faça real. Algo que me valha. Mesmo que eu tenha que me cortar fora para isso.)

— (Faz sentido. Faz sentido de sentir, sabe?) Então você acredita em destino? (É uma idéia meio auto-destrutiva, embora válida. Só acho que não gosto de nada que te pode. Nem suas partes mortas.)

— (Tudo que eu sinto é de sentir.) Não. Acredito que sujeiras acontecem. (Eu já morri por inteiro, ah!, se morri.)

— (Por isso que você é tantas em uma só.) E acontecem, não é? (E continua tão cheia da minha vida...)

— (Tantas o que?) Sim, por isso que estamos aqui, não é? Para limpar tudo? (Eu já matei sua vida, arranquei fora com a tal da minha personalidade.)

— (Cores.) Acho que sim. Eles foram e deixaram a sujeira para nós, não é? (...)

— (Voltamos a falar das unhas?) Precisamos de amigos novos. Definitivamente. Deixe que eu te ajudo com isso aí.

— (Nós nunca paramos de falar delas). Não, não. Você pode quebrar uma das suas unhas. Digo, cores.