Vestibulanda nº 37, sala 0063, terceiro andar.
Vez ou outra eu me arriscava a olhar pra trás. Eu já tinha terminado mesmo, até havia arrumado os papéis numa ordem fácil, pra sair logo dali: os que entregaria, por cima, e depois o que eu ia levar pra casa a fim de ver como é que eu tinha ido. Então eu observava as meninas da sala, todas com o mesmo nome (quantas Carolinas tinham se inscrito pra prova, meu Deus?), todas com o mesmo propósito. Todas concentradas, nervosas, revisando, escrevendo, rabiscando, com medo de perpetuar as respostas à caneta preta ou azul na folha laranja.

É por isso que eu achava tão engraçado o fato de ela ter tirado o tênis ― All Star preto, veja que clichê ― e deixado suas meias com gatinhos à mostra, pra todo mundo ver. Eu achava cômico porque era um contraste tão grande com aquele ambiente quieto e tenso, e até mesmo com a boca dela, retorcida e mordendo a ponta da lapiseira. Aliás, por que é que ela escrevia com lapiseira e não com lápis-grafite-preto-número-dois?

De qualquer forma, eu contei qual era o número dela. Quarta fileira, sétimo lugar. 37. Talvez eu pudesse olhar o nome dela na folha na entrada da sala depois, quem sabe dizer um “oi” ou coisa assim. Ou sei lá por que. Tédio, eu acho. Demorava tanto, mas tanto para que apagassem aquele “17” torto da lousa, que eu nem sabia se o que estava errado era minha percepção de tempo ou o relógio dos inspetores da sala.

Depois lembrei que eu não precisava olhar o nome dela ― era Carolina. Que nem o meu, que nem o da número 15, que nem o de todo mundo naquela mesma sala. Acho que eu nunca estive num lugar com mais de 70 Carolinas. Ou mais de 70 meninas, todas adolescentes, florescendo aqueles perfumes de chocolate, amadeirados, cítricos ou mesmo o cheiro de algodão dos desodorantes. Poderia ser inebriante, se eu não tivesse 90 questões para responder. Mas agora que ainda faltava uma hora (uma? Sei lá, não apagavam os malditos horários da lousa! por que a merda da sala não tinha um relógio?) e eu não tinha nem 90 e nem paciência pra revistar as 90, até que dava tempo de reparar na menina número 37. O cabelo dela era vinho, ela tinha uma face tão harmônica, e, porra, usar meias de gatinhos com uma blusa de moletom do Nirvana era engraçado o suficiente para eu ficar fascinada.

Tudo bem que eu só percebi isso na quarta olhada rápida ― eu não podia fixar o olhar, ia parecer suspeito ― então alguma coisa antes deveria ter chamado minha atenção. Não era porque ela era a mais bonita da sala (porque essa era a número 14, bem do meu lado). Aliás, não tinha nada, absolutamente nada nela ― exceto a combinação Nirvana-meias-de-gato ―que fosse digno de se prestar atenção. E talvez fosse justamente isso: ela não se esforçava para aparentar alguma peculiaridade. Por exemplo, a 31 tinha colocado um cachecol extravagante, a 19 foi com uma blusa com o nome do cursinho com um “X” bem grande, e embaixo escreveu com canetinha: “cursinho nunca mais”. Mas a menina das meias de gato era só a Carolina número 37. Ela não queria ser mais que um número. Ela não estava ali para isso. E talvez nunca estivesse em lugar nenhum para isso.

Teve um momento em que eu fiquei encarando-a um tempão. Estava tão mergulhada nisso que quase não percebi a fiscal ― com um “Carolina” estampado no crachá, mas que ironia ― chegar e me perguntar se eu já tinha terminado a prova. Eu disse que sim. Ela: “mas só pode sair depois das 18h”. Grande coisa, Inspetora Carolina. Como se eu não soubesse. Enfim, nesse tempo todo em que eu fiquei olhando vidrada pra ela, ela nem levantou os olhos da prova. Nem parou de mexer no cabelo ou morder a lapiseira. Acho que ela nem sequer piscou.

Decidi olhar um pouco a número 14, só pra variar. Ela já havia terminado a prova. E, ainda pior, percebi que ela estava de batom. O cabelo preto e curto era tão bonito contra o batom rosa-avermelhado que me deu nojo. Porque agora ela não era só a número 14. Era a Batom Rosa Escuro Quase Vermelho. E, não sei por que, mas naquele momento eu preferia só números.

Talvez eu estivesse carente demais. Talvez fosse minha auto-estima baixa que me fazia procurar beleza nas coisas e pessoas aparentemente sem graça. Ou, talvez, repeti pra mim mesma, fosse só tédio. Mas o problema era que tédio não explicava o porquê de eu ter escolhido a 37 para ser meu alvo de especulações e olhares furtivos. Eu a comia tanto com os olhos, eu tentava com tanta força decifrar o motivo daquelas meias de gatinho, mas eu não conseguia nem ao menos entender por que tinha sido ela.

Deram 18 horas. Graças a Deus.

Mas eu me peguei olhando para prova por pelo menos mais uns dois minutos, só para ver se ela entregava o caderno de questões e a gente podia descer juntas para o térreo. Mas aí fiquei de saco cheio e entreguei logo os papéis. Saí da sala e fiquei um tempão olhando pro nada, sem saber o que fazer. A moça que ficava no corredor me disse que eu não poderia usar o banheiro desse andar, e dei uma desculpa qualquer para olhar o nome completo da menina do moletom do Nirvana na lista de inscrições.

Notei, quando eu saí, que tinha um mar de pais, amigos e banquinhas de pastel na porta do prédio. E perguntei-me se a mãe ou pai ou tia ou qualquer coisa da 37 estava lá. Bom, tanto fazia, não é? Procurei um lugar com sombra e acendi um cigarro. Liguei pra minha mãe e pedi pra ela vir me buscar. Encontrei uma menina da minha escola e conferi as respostas com ela. Tudo isso no automático, sem perceber muito bem o que acontecia. Pra falar a verdade, eu estava mais procurando a menina com o canto dos olhos do que prestando atenção nos As, Bês ou Cês que a Giuliana falava. E minha busca não foi em vão: quase quarenta minutos depois ela parou a uns quatro metros de mim, acendeu um cigarro e puxou Praticamente Inofensiva da bolsa da Pink.

Pensei em mil coisas. Pensei em chegar perto dela e perguntar se o número da carteira era 42, numa piada idiota. Pensei em gritar “Carolina!” só para ela olhar pra mim, por um segundo que fosse. Desisti de tudo. A frase relacionada com o livro parecia pedante, gritar “Carolina” atrairia uns cinquenta olhares, no mínimo. Mas o motivo principal por eu não ter ido falar com ela era eu estar fedendo a cigarro e ter passado lápis do olho.

Um sedã preto encostou perto da calçada e ela subiu. Eu nunca mais a vi.

Mas fiquei feliz quando soube, pela lista divulgada uns meses depois, que ela passou pra segunda fase de Moda. Mesmo eu tendo sido reprovada pra Comunicação Social.