Tudo seria mais bonito se estivéssemos em Berlim. 
Você vê essas árvores, meu amor? Nativas, pelo que eu ouvi dizer. Eu já passei tantas vezes por essa praça que até me esqueço de colher as pitangas que às vezes caem no chão avermelhado. Em incontáveis ocasiões eu me fiz jurar que iria esquecer que já sou quase adulta e trepar na pitangueira para relembrar a infância. E não vou mentir: oportunidades não faltaram. Dizem que eu amadureci, e que não preciso mais pensar muito para saber o que é certo. Mas disso não tenho certeza. Se a realidade fosse essa, eu não estaria cumprindo as promessas tão pueris e inocentes que fiz? Ou, então, se elas fossem indóceis, eu não teria que abortá-las antes mesmo que fossem nítidas em minha mente?

Você sabia, meu querido, que as bananas são originárias da Ásia? As pessoas ficam tão surpresas ao ouvir isso! A familiaridade de um objeto o transforma em nossa pátria, ouvi dizer. O que é confortável, admito, mas não seria um pouco errôneo e ilusório? É como um estrangeirismo... Mas tão fixado em nosso vocabulário que já conquistou local permanente no dicionário. E o pior: uma palavra enraizada, disfarçada no nosso português, com "u"s ao invés de "w"s... Acho que esse tipo de máscara deveria ser considerado mais hediondo do que muita falsidade por aí. Sabe, os nossos macacos já são eternizados pela imagem de se alimentarem de bananas. Mas a banana veio de tão longe...

Digo, você vê aonde eu quero chegar? O que você pensa sobre todas essas coisas? Você pensa sobre isso, docinho? Ou está tão afundado em sua própria rotina, em sua piscina translúcida, que não enxerga mais a superfície? 

Eu quero te contar uma porção de coisas: mergulhar é muito bom. Acho que ambos sabemos disso, não é? Porém enxergar a superfície, com clareza, enquanto nada com os peixes palhaços (carinhosamente apelidados de "Nemo") é incrivelmente mais delicioso. Seja a sua realidade uma piscininha de plástico ou o mais profundo dos mares. 

Envolta no sal do mar de mim, posso começar a apreciar o gosto de comida para diabéticos. Entende?

É claro que é preciso engolir muito cloro pra entender que as pitangas que eu não colhi naquele dia ensolarado me fariam (e farão!) falta. É necessário quase se afogar em agonia para pensar em bananas como algo surreal e desconhecido. Para ver o mundo sem óculos, você tem que ter passado muito tempo nadando junto aos tubarões, seja enjaulado ou não, sem ter ao menos um par de pés de pato.

Mesmo expondo tudo isso, não pretendo de modo algum afirmar que olho para mim mesma como olho para um espelho. O mundo não é meramente físico. Pelo menos, o mundo interno nunca o foi. E lhe digo mais: é preciso desconfiar. É preciso estranhar cada detalhe do que vemos na televisão, ou no teatro de improviso no meio da rua. A dança! As cores! Tudo isso veio de tão longe, e é tão contrário a selvageria dessa nossa pátria, desse nosso sabor, que me deixa tonta. Deveria te deixar tonto também, sabe? Mas eu tenho tanto medo, eu tenho um pavor extremo de que você não entenda do que eu estou falando. O pior cego nunca foi aquele que não quer ver. A pior espécie de cegueira é aquela em que não se acredita nem ao menos que há uma alternativa.

E existe a chance, meu amor, de pensar. No meio dos hemisférios sul e norte da nossa alma, passa a tênue linha de costura. E é nessa linha que tudo é real. É nesse aglomerado de pontos que o pensado se funde com o visto, o ouvido se faz de mão, e a gente sente. Não sente a mão tocando em nossos dedos, e sim sente aquela vontade imensa de suco de pitangas. De descobrir a origem da banana. De aprender a falar francês.

Mas essas vontades quase nunca são atendidas, meu amor, e acabam por cair no esquecimento. É por isso que a minha vontade é que o visto se torne o sentido. Minha vontade é que a desconfiança nasça do próprio globo ocular. Eu queria mesmo acreditar que para isso não é preciso mudar drasticamente. Vê, não é só indo pra China que se aprende mandarim. Mas, de algum modo, eu penso que seria muito mais poético aprender por lá do que por aqui.

As coisas seriam mais fáceis se não tivéssemos que escolher entre a dúvida e a sabedoria.