Sobre minha melhor amiga e eu na Avenida Paulista.

Querida Olga...

Se eu fosse uma tinta, seria azul escuro. Não tão azul quanto o céu e num tom afastado do breu da noite... Eu seria cor de menta, tão azul e fantasmagórica quanto à dor da sua existência. E eu lhe cobriria o corpo miúdo de mim para você deixar de ser ouro. Porque a cobiça lhe derrete antes do fogo... Se você fosse tinta, e não dura, nós transaríamos num frenesi autêntico misturando nossas essências em suor e formando uma nova escala de cor que alguém um dia nomearia com aqueles substantivos estranhos que jogam em cima de tons assim. Roxo gato, se você fosse vermelha, verde joaninha, se fosse amarela. Acontece que não era nada disso: era ouro. E era tão valiosa que eu perdia o tesão perto de você...  

Eu ia a um bar qualquer e pedia um uísque. Olhavam-me torto, como quem pergunta se deve ou não dar prazer a alguém tão miúda e perdida como eu. Então eu acendia um cigarro, e como que por tabela, me traziam a bebida. E ficava ali, pensando em nada, num blecaute enorme, acho que num kamikaze vicioso que às vezes parava de ponta cabeça, para o meu desespero, e eu só conseguia ter uma imagem na minha mente: as meninas que você rejeitou.

Isso não é conto para essa pulseira, entretanto. Venho falando de nós. Dentro de mim pulsa um rim no lugar do coração, um osso onde deveria articular e há cílios em meus lábios. Presumo que nasci assim, toda certamente errada, e, se você não tinha habilidade para me operar, ao menos arrancava os finos pelos de minha boca com uma pinça, deixando tudo meio douradinho, como sombra da sua existência. E eu agradecia, beijava-te os dedos e comia com você algum petisco duvidável.

Certa vez, perdi o controle e decidi lhe querer.

Minha visão estava embaçada e eu ria histericamente. Você dançava, enrolei meus braços no seu pescoço e resolvi que lhe queria. Fiquei pensando assim: é tão minha que tem que ser minha menina. Já que não era, você virou o rosto e eu ri em desespero, porque é o que eu poderia fazer. Ficou esquecido esse episódio, e eu nunca mais me atrevi a lhe querer. Repetitivo assim: quero queria. E não quererei. Até porque, lhe vendo assim como você é, tão bonita e perturbada, eu sei que não cabe no meu bolso apertado cheio de cigarros e isqueiros.

Não interessa portanto meus distúrbios de relação com você, vim falar de mim. Tinta azul. Que venho pintando a Avenida Paulista inteira, por cima daqueles dizeres que pareciam racistas e que rimos sobre eles juntos. Por cima das nossas fotos, por cima dos cigarros que você me deu. Venho traçando essa linha que como uma doença avança sobre mim  e me deixa desesperada, gritando: “Olga! Ô, Olga...”.

E seu nome foi assim invadindo o dia a dia de cada paulista que te via passar no metrô, andando meio irregular, segurando os seus pertences apertados contra o peito, com medo de um assalto. Mal sabe que o assalto seria de você mesma, lhe roubarem do mundo para fazer jóias. Não importa se acham que é mais bonito em forma de coração. O coração, puro, é ouro. O coração, inteiro, é você, Olga.

 E tudo bem se você achar que ouro e prata combinam. Tudo bem você gostar de marfim. Mas quero que você pense também às vezes em pintar a casa, e, (peço em mísera esperança crua), que seja de azul.