Onde nascem milhares de ecossistemas
Foi a primeira vez em que a areia beijou o mar.
Foi a primeira vez em que a areia beijou o mar.
Chegava a ser chamado de irônico o modo em que corria o nosso amor. Eu, era água. Clara, fria, profunda. De olhos azuis. Como o mar. Meu amor, era cínico. Discutia com a chuva o tempo inteiro. Mal sabia ele que o desfoque em que a chuva o deixara, refletia nas pequenas e infinitas gotas de mim.
Meu amor era areia. Éramos o que chamava-se de própria intriga. Queríamos sempre competir, ou quem amava mais, ou quem era maior. O real e o abstrato. Eu sentia as pequenas embarcações produzirem cócegas em meu lombo. Sentia a areia quente, tentando me sustentar, ao mesmo tempo em que abrigava milhares de pés o pisoteando. Erámos dois extremos. Eu não o suportava, por ter de sempre ser minha base em quaisquer que fosse meus deveres e necesssidades. E ele me odiava por ter de me proteger sem qualquer desejo de fazê-lo.
As diferenças eram sublimemente bonitas, mas isso eu nunca admitiria. Eu sentia seus grãos beijarem-me o corpo: os pés, os braços, as costas... O corpo inteiro, porque eu nunca fui concreta. Como a água, era espalhada, transformando-me em qualquer situação. Eu era moldável. Adaptável. Já ele, ah, ele...
A areia precisa da água pra se moldar, como ele precisava de mim para encontrar o seu lugar nesse mundo. A areia pura, fina, não fica de pé de jeito nenhum. Seu lugar é no chão, a ser pisoteada, sem reclamar. Sempre plana. Sempre indiscutível. E eu, quando fundia-me com ele, deixava-o bonito, e as crianças vinham em nós e moldavam sonhos como castelos de areia. Era bonito ser praia. Mar e areia, praia.
E o nosso resultado era mais bonito ainda de se ver. Além de castelos, príncipes e princesas, túneis de areia e baldes d’água, éramos sorrisos. Sorrisos jovens, de crianças contentes em ver este amor, que antes, era negado pelos dois sujeitos.
A areia, sem o mar, nada é, senão areia. E o mar, sem a areia, não forma praia. Assim como eu e meu amor. Sem ele, eu não sou como o mar. E ele sem mim, não é areia.
E aquela foi a primeira vez que a areia beijou o mar.
Mas, como dois amantes, veio a chuva. E a areia toda se encharcou, perdeu forma. Virou poça. Areia e água, mas aquele líquido não era o meu, tão salgado. Era doce, mas era extremamente amargo, fim de uma união tão agradável. Eu me agitei, como faz o mar em tormenta, contrariando vontades de mil marinheiros. Fiz ondas, tentei fazê-lo ficar, matei peixes, fiz de tudo. Mas não adianta. O que é tão diferente assim, sempre tem um final. E restou-me aceitar. A calmaria há de vir, se a tempestade passar.
Porém, mesmo assim, em todo o final de história, não é o verdadeiro fim. Ainda há praia. Ainda há ele lambendo meus pés, ao menos em minha memória. Talvez ele não saiba, mas somos berçário de tartarugas. Mesmo longe um do outro. Elas vêm, vivem em mim, mas nascem nele. Como nosso amor. Começou em mim, nasceu nele, floresceu, brotou, e morreu. Mas tenho certeza que ainda há praia. Mesmo que ninguém mais faça a água e a terra se misturarem. Mesmo que ninguém faça-nos homogêneos. Nunca fomos um só, e, por isso acabou. Mas somos visitados por milhares de turistas, e há de ser assim. Há de haver vida em nós. Eu sei que é assim que deve ser, porque a maré continua subindo e descendo.
Como ondas, de nostalgia, talvez. De desconfiança. Desconfiança em si, por não saber se ainda há amor. Ou será apenas lembranças? Saudades? O tempo nunca diz. Porque o amor é como um esconde-esconde. Ele foge, mas um dia, há de ser achado.