Enquanto eu espero minha aula de piano
Falta uma hora para a minha cura começar.
Fecho os olhos e sinto o calor na minha face, essa vontade de arrancar as roupas fora e o corpo junto não é de hoje, não. Mas vai saber se amanhã faz frio, não é? Continuo vestida e inteira, embora eu me sinta como se derretesse sempre. Eu nunca vou embora, de fato. Ninguém nunca vai.
Rio, quarenta graus? Dentro de mim a temperatura provavelmente é mais alta, então.
Já cortei o cabelo, já vesti roupas de gelo... E o calor não passa. Tudo bem, eu supero.
Quarenta minutos para minha cura.
E há prazer maior que passar os dedos pelos machucados após a cicatrização? E exibir os medos minúsculos da infância: “essa cicatriz eu ganhei quando caí da árvore, era uma árvore de um metro, mas mesmo assim deixou marcas”. Há um orgulho evidente em ter marcas. Cortou, sangrou, inflamou... E agora é só um desenho engraçado na pele, de cor diferente da sua palidez óbvia.
36 minutos. A espera doeria, se eu não estivesse aqui perdida: esparramada no sofá, comendo pudim e ditando para vocês todas as minhas verdades mais obscuras. Psiu, é segredo... Mas acho que no fim eu até vivo bem. Sabe, é como estar numa loja... Eu não saberia qual produto escolher. Eu me perderia em oportunidades. E não é isso que faz uma refeição ser boa? Variedade de cores, gostos, texturas?
Sou cada hora de uma vez. Sou cenoura e sou alface. Dizem até que sou o sanduíche inteiro. Vai saber! Tem cada coisa nesse mundo, tem cada sol brilhando e iluminando aquele prédio que é mais-bonito-que-o-meu e me dá inveja... O que eu não percebo é que o sol é meu também, e o prédio não me pertence menos só por eu não morar nele.
Amar as coisas, amar as pessoas. Amar a tudo. Amar até mesmo a massa de pudim molhado que desce para meu estômago agora. É assim que a vida deveria ser.
Vinte minutos, mas acho que a cura já veio.