O Sorriso do Velho
A porta está fechada.
Estou no meio do nada. Do nada mesmo, bem aquela coisa de tudo em volta estar branco. Vou andando mesmo assim, sei o caminho para casa. Mas não vejo nada. Só sinto. Seguro meu chocolate mais perto, como se ele fosse derreter longe de mim e a frieza do meu peito fosse o acolher como uma geladeira.
A cor ao meu redor no começo é um tanto assustadora, mais ainda que a perspectiva de bater com o nariz bem no meio da dureza de madeira da porta. E a idéia de meu sangue tão doído não manchar aquele chão? Continuaria tudo... Branco.
Vou andando e me deparo com um velhinho. Cabelos brancos (tinha que ser branco!) e uma boina enfeitando a cabeça manchada, camisa xadrez... Um cigarro a ser aceso despencando na boca, grudado na pele fina e delicada dos lábios já cansados de gritar. Mais que isso, caio dentro dele. O velho me fita ― pára no meu chocolate uns instantes ― e sorri. Sorri sem querer vida, sem querer morte, sorri sem nem querer sorriso! Sorri, só, e vejo na fumaça que sai da primeira tragada os fantasmas daqueles dentes amarelados. De repente há ele ao meu redor, como se eu pudesse tê-lo também.
Só que a porta... Continha fechada, trancada, imponente.
Fecho os olhos para reaparecer em algum lugar considerável e vejo novamente o velho. Vou lá e o beijo, o beijo sem largar meu chocolate e sem me mexer, o beijo do jeito mais puro que se pode haver: sorrindo na imaginação e com lábios de moça. Ele nem se dá conta, mas joga aquela fumaça amaldiçoada dentro de mim, e pft, é mágica, é simples: morro. Morro e sou matada e sou ferida e sou transformada e sou uma coisa que nem reconheço mais, mas que faz cócegas.
Não sei dizer direito como, mas deixo aquele homem derreter em mim assim como faço com o chocolate. Só que ele é amargo, porque eu vou andar um pouco mais assim que os segundos efêmeros em que eu posso sorrir de volta e o observar passar, e então ele vai sumir. Sumir não de mim, ele já é de minha posse, já é meu mesmo e nem sabe, o velho é tão meu... Mas ele vai embora! Embora do que é físico, nunca mais vou olhar em seus olhos cansados e fumar seu cigarro sem permissão. Nunca mais vou sentir seu toque macio só de olhar, nunca mais vou olhar só de sentir a pressão daquele sorriso no meu rosto, como um tapa na cara.
Tudo vai voltar a ser branco.
Uma vontade de gritar me invade. Ainda de olhos fechados, respiro pela última vez a fumaça do cigarro do velho e dou um passo trêmulo para a frente, me colocando no caminho novamente. Mas, quando abro os olhos... Há pessoas. Uma multidão de faces me envolve ― e o amável velhinho se torna só mais um em meio à imensidão... Mas eu não estou mais sozinha...
E, de repente... A chave cai. A porta continua lacrada, de algum modo, mas a chave caiu e não preciso mais dela. É como se eu fosse puxada por dentro, algo em mim se vai, mas algo ainda maior vem: não. tem. mais. chave.
De alguma forma tudo está conectado. Sei mesmo que até a vendedora gordinha que recebeu o meu dinheiro pelo chocolate é minha. Sei até mesmo que ela odeia o trabalho e que tem namorado. Não sei como sei, só sei. Ou talvez eu esteja inventando porque não suporto não saber. Quem sabe... Eu, ao menos, não sei. O velho deve saber...
Abri a porta e entrei. É difícil para mim dizer que não olho para o céu e vejo o mar. Mas não tem problema não, eu sempre gostei do oceano...
Acho que sou mesmo é apaixonada pela minha vida. De quando em quando, de quando em quando...