Não quero cubos de açúcar. Adoçante, por favor.
Ele sorriu para mim quando entrei e pediu-me o casaco.

O lugar era bonito, apesar de cheirar a poeira. O chão de madeira se perdia em meio às manchas, mas, mesmo assim, foi onde eu decidi me sentar. Abracei meus joelhos nus e sussurrei um ritmo às minhas coxas. O homem continuou sorrindo, como se esperasse algum ato nesse nível de mim.

Esse é o problema da (in)conveniência, sabe? Mal as pessoas vão sendo úteis para a gente e já vão achando que podem esperar certas atitudes da gente. Como se, sei lá, ninguém sentasse no chão ou cantarolasse de cabeça baixa, só eu.

Ele me ofereceu uma xícara de chá. Aceitei desde que fosse com açúcar. Eu nunca gostei de adoçante.

Adoçante é se engrupir. Em pó, pastilha ou líquido, só são formas diferentes de dizer a mesma coisa: enganação. Não tem o gosto do açúcar, não é natural, não é tão bonito, não é saboroso. É um pó quase similar ao de ossos ― com gosto parecido, talvez ― com aquele anúncio engraçado de dizer que “duas unidades são equivalentes a uma colher de açucar”. Equivalentes em quê? Em calorias, só se for. Em gosto, qual nada, uma ova. Adoçante é enganar, adoçante é querer vestir uma felicidade momentânea de juntar o incompatível, adoçante é a maior mentira já inventada desde... Desde a Polishop.

O moço inclinou o bico do bule sobre uma xícara com algumas rachaduras na ponta, meio gasta, assim como tudo ao redor, mas também semelhante em beleza. Levantou-se e me entregou o objeto, me olhando por cima, com um ar meio superior, quase gozando de mim, de meus joelhos nus e de minha música improvisada e su(ssu)rrada.

Ri de volta, ri seca, ri molhada e silenciosa com a boca cheia de chá. O que éramos além de um saco de porradas, provocações e alfinetadas? Algo ― temos que ser algo, repeti para mim mesma ―, algo que eu não reconhecia mais, entretanto. Um gosto difícil de engolir, tão oposto ao gosto simpático e fazedor-de-cocégas do chá de ervas que eu engoli. Deixei a bebida me esquentar. Aonde eu cheguei? Até onde eu fui? Preciso de algo externo para ser eu, preciso de chá para ser quente, alegre, expansiva. E de açúcar. Principalmente do gosto doce e esbranquiçado. Ele não entende, ele não me vê mais, mas eu não lhe culpo.

Tudo bem, eu culpo sim, mas é uma acusação sorrateira, sem evidências, secreta e escondida. Secreta. Segredo. Coisa que nuca houve por aqui, nessa casa velha e caindo tão docemente aos pedaços. Nos livros que eu lhe emprestava, ele sublinhava as minhas frases favoritas e fazia uma carinha feliz ao lado. Devolvia para mim com uma crítica minuciosa, mas com um olhar agradável também. Mas hoje, ah, hoje a crítica me assustaria tanto a ponto de eu não saber mais identificar o olhar... Eu sei que seria assim.

Ele, então, sorri como sempre sorriu. Eu lhe olho com olhos inéditos. De repente seu cabelo cortado de jeito estranho e sua barba que pinicava quando você beijava minha bochecha não são mais meus, se tornam seus... É estranho, é como estar em dois corpos que eu não conheço mais.

Puxa um assunto aleatório. Começa a falar sobre seus casos com a fulana ou sobre o que a outra moça que não me lembro o nome fez. Falou sobre coisas que em outrora me fariam sentar ereta e quase derrubar minha xícara de surpresa, falou até sobre minha recente perda de peso. Disse que preferia eu mais gordinha. Ignorei. Quando eu tinha algo para comer, quando eu tinha alguma gordura para meu corpo utilizar, eu me preferia também. Agora, seca, magra, sem ter como sobreviver... Eu nem sei o que é preferir mais.

Ele diz. Eu digo. Ele ri. Eu rio. Ele chora. Eu choro junto. Automático assim, como se apertasse um botão e a sintonia saísse, perceptivelmente forçada, mas de um jeito que ele, cego, não visse.

“Nosso encontro vem sendo agradável, né?” “Ah, claro, claro”. (tosse seca e gole de chá longo) “Ei, te amo”.

“...”.

Falta a fala. Como pode? Como pode não me ver, embaixo desses ossos pontudos, pedindo socorro, afundando sozinha, e lhe odiando, entorpecendo algo antigo, remoído. Criando alucinações para nós, fazendo dele algo que ele não é mais, tendo esperanças numa amizade já demolida... Nós, o antigo açúcar que se tornou aos poucos adoçante.

Agora, se você me dê licença, pendure esse tal de amor no armário e me devolva meu casaco para eu cobrir e tentar esquentar toda essa dor.

Continuo sozinha na casa velha, com ele e sozinha. Cantando baixo para afastar algo que eu desconheço, cantarolando uma velha canção que só os meus joelhos mesmo poderiam decifrar e entender. Escrevendo e cantando, escrevendo como se fosse possível cantar. Escrevo agora para salvar uma parte de mim que se morde e se come. Canto agora para restaurá-lo, ou a imagem dele, aquilo que há de permanecer na minha mente com carinho, mas, de algum jeito, só me sobra o ódio... Ah, por quê?

Eu. Cantando e escrevendo. Escrevendo. Cantando.

Não é preciso escrever para cantar.

Mas você precisa alimentar as palavras bem se você quiser que, algum dia, elas aprendam a melancolicamente dançar.



[no ritmo]



[em seu ritmo]





...



[ao próprio ritmo]




[existe ritmo?]