Inverno astral. 
Se você olhar bem, acho que verá que meu apreço por você é maior que os outros sentimentos aglomerados que se costuma embrulhar e estender para alguém como um presente de aniversário. E eu nunca entendi muito bem como é que, cada vez que eu mergulho naquela velha cachoeira de águas mais fundas do que as pedras sugerem, eu vejo um peixe diferente. Acho que esse cardume de ilusões que eu construí ganhou vida própria. Ele se desfaz a cada vez que tento acertar o peixe grande com uma lança. E é engraçado, é como ser Dr. Frankenstein ou um tubarão, aterrorizada e aterrorizante. Esses preconceitos são como gangorras, e arrancar tudo de um dos lados desequilibraria meus biomas talvez de forma drástica.

O que eu digo, amor, é que à medida que esse castelo que ergui é assombrado, a floresta que o rodeia é igualmente agourenta, e portanto é só uma questão de escolher por o que cair. E então eu prefiro não morrer na praia.

Isso é só uma introdução para uma canção meio torta que tento compor, como um prelúdio. Dizem-me para apertar o pedal e deixar o som invadir a sala como um guerreiro medieval, mas eu prefiro igualar minha possível composição a algo mais natural, como uma música que sai do rádio. Não quero dizer com isso que minha busca tem a genialidade ou banalidade do que é digno de venda, mas sim que minha ambição é me encontrar numa simplicidade meio decadente, meio flutuante. É quase metalinguístico, entretanto, fazer uma apresentação tão longa e não lhe mostrar ao menos um si ou um lá.

Como eu dizia, cada vez que eu tento fotografar o que é tão bonito sobre seu cabelo encaracolado que você insiste que é muito comprido - já que isso diz mais a respeito de mim do que de você -, o flash dispara ou o Sol se esconde nas nuvens ou começa a chover e o retrato sai inesperado. Embora, como tudo além das expectativas, as surpresas possam ser agradáveis, o que mais pesa é minha frustração de não conseguir enquadrar meus sentimentos, personalidade e intenções.

Para quem sempre se considerou uma artista, isso é quase um escárnio.

De dia meus lábios se contorcem e tenho que molhá-los sozinha. A manhã se arrasta, uma, duas, três horas; cinco, sete, dezoito minutos a mais. A natureza provoca, e eu revido com uma mordida, apesar de a única prejudicada com isso ser eu mesma. O dia é matemático, e eu jorro biologia da minha boca e nariz. Essa ânsia de sangrar só para romper o tédio talvez não invada todos meus átomos, mas de certa forma ela ainda não é ausente. Deve ser por isso que eu traio sua confiança para me entregar a um batimento acelerado e a uma cédula alaranjada. Ou talvez eu só queria me divertir, docinho, e por não saber o que isso supõe, me entregue mais a você do que à Terra, e mais à Terra do que a mim.

Essas minhas pernas curtas se assemelham às da mentira, e acredito que ela se pareceria comigo, se esse holograma fosse projetável. Não é que eu minta, é que meu cabelo continua esvoaçante e meu rosto ainda é redondo; e, se eu me mantenho sólida depois de tanta dança de salão e sapateado no estômago, me parece errado receber outro nome e outra ficha. Suponho que o corpo e a mente não sigam tão sintonizados quanto é dito, e eu quero ser uniforme até em relação a nuances tão incompatíveis.

Eu não estou acostumada a poder me render a esses prazeres instantâneos e acabo tropeçando nos nossos cadarços e derrubando não só eu e você, mas também mais meia dúzia de pessoas. Minha boca anda muito mais seca do que é saudável, e isso ser a coisa que mais me preocupa é assustador. O pior sintoma é tão insignificante e eu ainda tenho em estoque receitas, comprimidos e vacinas empoeirando na despensa. Não é o desperdício de tais medicamentos que é brutal, e sim a singularidade bruxuleante que ele carrega.

O essencial não é invisível aos olhos, ele apenas está muito bem escondido nas entrelinhas do que se vê.

Ou talvez seja nisso que eu me force a acreditar.